28 novembro 2009

..filha de Yemanjá..

Ela costumava ir à praia todo domingo, no posto 10, em Ipanema.

Chinelinhos vermelhos, chapéu de pano para não queimar o couro cabeludo, já que seu cabelo era muito ralinho, deixando sua careca quase exposta.
Quando chegou foi logo reparando no mar. Tinha profunda admiração pelo mar. O respeito era tão grande que acabava se transformando em medo de sua imensidão.

- Não gosto quando o mar balança.

Seu medo tinha dois grandes motivos.
Quando criança a mãe a colocara para fazer aulas de natação em um verão e a tirou no inverno. Nunca mais voltou.
O avô a forçara diversas vezes a ir ao fundo do mar com ele. Mal chegava à praia e já carregava a primeira criança no braço. Umas gostavam razoavelmente, mas a grande maioria detestava.

Mas naquele dia o mar estava diferente. As ondas não eram muito grandes, mas vinham de todos os lados. Pareciam peixes nervosos procurando comida, saída ou qualquer coisa de urgente que fazia com que ultrapassassem a velocidade da luz.
Como que num ritual, ela sempre molhava os pés, as mãos e a nuca para saudar o mar.

- Salve Yemanjá

Voltou para a areia e percebeu que seu lugar não estava mais ali. Suas roupas, chapéu, balde e chinelinho vermelho haviam sumido. Pensou que devia ter se enganado e que as coisas estavam mais pra lá. Começou a andar em direção à barraca da Janaína, que era a vendedora de côco e grapette mais antiga da região.

- Jana, perdi minhas coisas.

- Mas você não passou mais por aqui.

Ela não entendeu nada. Sempre descera no mesmo lugar, mesma escada, mesmo caminho de areia, que era reforçado diariamente por seu pai, para que não queimasse os pés na volta, sob o sol quente de meio-dia.
Resolveu relaxar.

- Me dá um grapette.

Grapette lhe remetia à infância. Aos jogos de frescobol na beira da praia. Às queimaduras de água-viva no fundo do mar. Castelinhos de areia do reino das joaninhas. À coceira na sola dos pés provocadas por patinhas de Tatuí. Aos peixinhos que se misturavam às cristas das ondas.
Ela já não tinha mais aquele chinelinho vermelho. Nem o chapéu de pano. Seu avô já não podia mais nadar acompanhado. O mar foi tomado pelo cheiro do álcool. Já não era mais tão azul. Nem tão verde.
O Grapette já não era mais Grapette. Substituíram por essência de uva gaseificada.
Os jogos de frescobol já estavam proibidos na beira da praia e impossibilitados no fundo pela alta temperatura da areia.
O caminho fresco do fim foi desfeito pelo vento e o chinelinho já não cabia nos seus pés de unhas vermelhas descascadas.
Os Tatuís foram levados para uma enseada e passaram a viver coçando conchas quebradas pelas embarcações.
As águas já não eram mais tão vivas e já não queimavam a palma da mão.
O mar foi tomado pelo cheiro do álcool e seu avô só queria nadar sozinho.
Voltou ao seu lugar e encontrou um espaço.

Vazio.

Então percebeu que a menina se tornara mulher. Ainda filha de Yemanjá. Amante do saudoso Grapette. Carente dos caminhos frescos na areia. Desajeitada e esquecida.
Não lembrava mais como se construía os pilares dos castelos. Não sabia mais capturar joaninhas ou acertar as bolinhas azuis que ultrapassavam a velocidade da luz.
Seu medo pelo mar foi embora com as ondas povoadas por peixinhos ligeiros.

Só ficou a lembrança.

Agora o posto 10 virara 9 e meio. Ela passara a ouvir apitos vindos com o vento. O cheiro de álcool virou cheiro de mato e o mar ficou mais verde que azul.
Aquela praia não era mais a mesma, mas continuava ali. Intacta. Inatingível.
O vento não levou a areia embora. Ela estava mais mexida, misturada e um pouco pisada, mas continuava a mesma areia de sempre.
Seu chinelinho precisou de um pouco mais de borracha e seu chapéu, um pouco mais de pano.

A menina se tornara mulher, mas ainda filha de Yemanjá. Ainda amante do Grapette e saudosa de caminhos frescos na areia e mergulhos arriscados no mar. Seu castelo não era mais de areia e seu reino não era mais povoado por joaninhas, tatuís ou peixes ligeiros.

Mas ela continuava indo à praia todo domingo. Fazia o mesmo ritual, sentava na mesma areia mexida e acompanhava a rotina das joaninhas destronadas.
Só que agora ela era mais cuidadosa. Não queria mais se arriscar. Não queria perder suas lembranças, suas vivências, suas emoções. Não queria deixar passar sequer uma bolinha azul ou um peixinho ligeiro.

Antes de ir ao mar ela sempre procurava alguém. As pessoas mudaram, se renovaram, cresceram. Não reconhecia mais aquelas expressões, aqueles cheiros, aqueles baldinhos de areia, aquele sol que queimava a pele...mas ainda assim ainda era a mesma areia mexida, a mesma praia de infância, o mesmo posto, a mesma barraca, o mesmo chinelinho vermelho, o mesmo chapéu de pano, a mesma menina, a mesma mulher.
Ela não podia se arriscar a perder tudo isso...

- Você olha as minhas coisas enquanto eu mergulho no mar?( )

24 novembro 2009

n.i.n.a

..nós somos
ficamos
permanecemos
pra sempre
eternamente
até que a vida nos una
irmãs
amigas
cúmplices
sem pretexto
sem afinidades favoráveis
sem ocasiões oportunas
irmãs
amigas
cúmplices
até que a vida nos una
até que o tempo nos proporcione
até que o vento nos leve

até que a chuva nos seque
até que o sol nos cegue
até que a luz nos acolha
até sempre
pra sempre
eu e você
nós duas
irmãs
amigas
cúmplices
até que a vida nos una
até que o sempre seja eterno..( )

20 novembro 2009

.sem que nem se.



procuro respostas para perguntas nunca antes feitas
perguntas feitas diariamente
perguntas eternas
presentes, frequentes, permanentes
procuro perguntas sem resposta
perguntas livres, leves, despretensiosas
sorridentes, amáveis, acolhedoras
diretas, intransigentes
toscas e tolas
perguntas sem perdão
sem que nem se
sem se ver
sem tocar
perguntas sem amor
descrentes
infiéis
ininterruptas
sem nome
sem pergunta
sem dúvida
sem respostas acompanhadas de escolhas incertas.(  )

18 novembro 2009


eu quero um novo amor
um amor novo
amor leve
leve amor
um amor que não tem cerimônia
que tem identificação
que tem pele que cola e não desgruda mais
um amor adulto
amor de infância
p l a t ô n i c o
em sintonia inexplicável
amor de cinema, de novela, de história em quadrinhos
amor que vem, que fica, que quer ficar e permanecer
e permanece
amor.( )

17 novembro 2009

..Por não estarem distraídos..

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Clarice Lispector

14 novembro 2009


ocupa tão pouco espaço e preenche o universo
invisível e inevitavelmente real
visível para os que vivem

Ar
Som
Ruído
Música
Ouvido

pode ser azul serena
verde calmante
amarela ansiosa
vermelha com tensão
branca com amor
e violeta para todos que acreditam que o grão tapa a esfera

quente
fria
solitária
amparada

quero lhe presentear
quero pedir
quero abastecer
quero solicitar
c u r a r
quero acreditar em luzes fortes para apagar a fraqueza dos meus pensamentos escuros..( )

12 novembro 2009

..rosa de Clarice..

Rosa é flor feminina que se dá toda e tanto que para ela só resta alegria de se ter dado.
Seu perfume é mistério doido.
Quando profundamente aspirada toca no fundo íntimo do coração e deixa o interior do corpo inteiro perfumado.
O modo de ela se abrir em mulher é belíssimo.
As pétalas tem gosto bom na boca - é só experimentar.
Mas a rosa não é it.É ela.
As encarnadas são de grande sensualidade.
As brancas são a paz do Deus.
É muito raro encontrar na casa de flores rosas brancas.
As amarelas são de um alarme alegre.
As cor de rosa são em geral mais carnudas e tem a cor por excelência.
As alaranjadas são produto de enxerto e são sexualmente atraentes.(CL)

maria.bonita


..de um desejo
uma vontade
uma necessidade e um querer
surgiram manchinhas peludas no meu caminho

língua molhada
orelhas atentas
olhos encantados

f i d e l i d a d e

chorinho no domingo
banho na segunda
parque antes da lua
lambidas ao anoitecer

já irmãs
confidentes
dependentes
amantes sem compromisso
mãe
filha

bu e maria.( )
Na fila do banco o tempo passa
passa em segundos sinalizados por apitos

86. faltam 9

tenho 9 momentos apitados para pensar no que dizer

todos esperam calmamente o seu momento

87. faltam 8 apitos para a questão

contas, pagamentos, reclamação ou sugestão

eu sugiro que tenham menos apitos nas filas em que se cobra
eu solicito menos cobranças apitadas nas filas da vida

95. é o meu apito
meu momento de falar de reclamar e de pagar

quero pagar menos
reclamar o necessário
e apitar pro resto da vida

o apito nos faz ter certeza de que estamos

96. sua vez de apitar

eu só serei e estarei novamente no próximo dia 5
até lá ficarei com a memória inexistente
de um apito acolhedor.( )

10 novembro 2009

Dá-me a tua mão..

Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir – nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.(CL)

09 novembro 2009

Ontem

É o que me resta
Pensar
Esperar o momento...o tão esperado encontro da impotência com a superação

Quero ir de encontro à plenitude...mas depende da sua interpretação e generosidade

Estar pleno é imaginar sem ser
Pensar sem estar
Ficar sem partir

Eu quero, posso e consigo...
exemplos de tentativas de superar o medo de não ser
de não pensar
ficar parado no mesmo lugar até que a vida nos encontre.( )
mole e macio
preto e branco
sujo e áspero
amarelo esverdeado

se você soubesse o quanto
quantas luas
horas intermináveis
espera sem fim

e o que sobra pra mim?!
sempre o bagaço...

Não temos mais vagas
vagas são vagas
vagarosamente vagas
vagamente vaga...( )

Gilda

Unhas vermelhas
Salto agulha
Perfume francês
Meia-taça preta
Renda inglesa
E o bom português

Busca força
Coragem
Gênio forte
e espaço para sentir

Os pés esticam
O peito estufa
e as mãos procuram um lugar

Lugar de ouvir
de retrucar
e pensar em sumir.( )

04 novembro 2009

.Flor Mulher.

A menina
brotando
saindo do casulo para enxergar o sol

A rosa
nascendo
formando espinhos para impedir o ato predador

A mulher
permanecendo
criando obstáculos para dar sentido à função de Ser

A árvore
vivendo
gerando frutos para saciar desejos de pássaros que vivem passando e passam sonhando com brotos frescos no fim do dia.( )

Violeta


A violeta é introvertida e sua introspecção é profunda

Dizem que se esconde por modéstia
Não é

Esconde-se para poder captar o seu próprio segredo

Seu quase não perfume é glória abafada
mas exige da gente que o busque

Não grita nunca seu perfume

Violeta diz levezas que não se podem dizer... (CL)

..hoje..


Difícil explicar
Estamos, ficamos e permanecemos por pouco tempo
Tempo acelerado
Tempo suficiente para entender que tempo não é essencial
Tempo que basta no já
No agora
No "Só por hoje"
Só por hoje eu quero ser sempre
Sempre quando, sempre onde, sempre eu.()