14 julho 2010

"mim"



 Todos os dias ela acordava e procurava por eles...mas nunca encontrava.
Escovava os dentes sem  saber a posição certa da escova em relação à gengiva. De tanto não saber, sua boca sempre sangrava.
Sentava na mesa para tomar café, mas o pão estava sempre dormido...o nescau, já misturado.
Esperava o ônibus da escola e sua mochila pesava nas costas...mas ela teimava em não apoiar no chão.
Escutava a professora, e seus ensinamentos padronizados, não se igualavam à sua vida desconexa.
Voltava para casa no fim do dia, com o pretexto consolador de um cansaço exacerbado, para não precisar ouvir a sua própria voz na mesa de jantar.
O dia passava todos os dias, sem nenhuma perspectiva de mudança.
A falta de imagens codificadas era tão grande que ela já quase não enxergava a sua, refletida no espelho.
Em momento algum questionava a ausência que sentia.
Se ateve à sua conformidade e seguiu o curso, arduamente natural, de sua vida artificial.
Eventualmente recebia notícias de uma existência, mas não passavam de informalidades.
Formalmente, a sua opinião e temperamento foram se transformando em casos de ausência, irreversíveis.
A sua ausência estava começando a atingir o limite do suportável...as consequências eram notórias...as reações repulsivas.
Começou a questionar: Por que?
Por que não havia resposta para perguntas tão simples?
Por que não haviam perguntas à altura de uma resposta incoerente...incabível...deprimente.
O descaso tomou conta de sua juventude, e sua fase adulta foi marcada pela fuga dos acontecimentos.
Ela se projetou em lugares, menos frios e, ligeiramente, acolhedores.
Se submeteu a confiar em estranhos sinceros, que eram bem mais confiáveis que os conhecidos ausentes.
Passou anos vivendo em um reino distante do seu.
Incomunicável, inatingível, sorridente, insoletravel...
Percebeu que nunca tivera reino nenhum.
Sua casa era ela mesma. Seu corpo era seu abrigo. Suas palavras, seus cômodos. Seus sentimentos eram aquecimento.
Começou a viver, assumidamente, e agora, propositalmente, só para ela. Só havia uma imagem no espelho: o traçado oco de uma figura sem conteúdo.
Os conteúdos preenchidos de vazio, não eram mais admitidos por sua tolerância.
Ela se cansou.
Quem era ela hoje?
Uma menina, que continuava a traçar sua vida sozinha, continuava não questionando, continuava negando suas possibilidades de garfo e faca na mesa.
Uma atriz, condenada a ser personagem de sua própria vida ilusória e inquestionável.
Uma coadjuvante, buscando diariamente, ser atriz principal de sua própria história.
Uma mulher, cansada de ser ausente de si mesma.
Uma pessoa, buscando a felicidade.
Uma alma, buscando luz. ( )

9 comentários:

Lidiany Schuede disse...

Texto maravilhoso.

Ludibrium disse...

Sem palavras, texto lindo, lindo, lindo, parabéns.

Anônimo disse...

Sempre serás a atriz principal de sua própria vida e, por isso mesmo, responsável por todas as atitudes tomadas, e escolhas feitas... Talvez, os conhecidos ausentes sejam coadjuvantes, e os estranhos sinceros atuem secundariamente junto à protagonista...
Uma menina que, se olhar bem para o lado, saberá que existem pessoas que estarão sempre lá, por ela... sempre. E que nunca esteve,está ou estará sozinha...

André Planta disse...

CARALHO! Vou te ligar A-G-O-R-A!

Alonso Zerbinato disse...

Eu leria esse texto todos os dias e talvez trocasse algumas palavras de lugar. Surgiria algo como: "uma mulher sorridente, incansável, cheia de luz e felicidade." E eu acenaria com a cabeça assertivamente. Amo você.

Carina disse...

Lindo texto, amiga, lindo! E amei a foto, incrível. Saudade! Bjo

Anônimo disse...

Um belo texto...Nunca estamos sozinhos! Nossas escolhas nos levam e nos trazem sempre e sempre para algum lugar, onde procuramos alimentar nossos corações iludidos de nós mesmo!
Charles K.

A. Le Savoldi�� disse...

Por que não havia respostas para perguntas tão simples? Uma alma que sempre está em busca...

Nossa, lindo demais seu texto Bu !

. . . .Filho da Poesia. . . . . disse...

através dos questionamentos, chegamos às respostas... dúvidas e vivências atuam no autoconhecimento... por meio dos incômodos e anseios, mudamos, transformamos... essa menina está no caminho certo, está se confrontando, se encontrando... essa ausência que sente está sendo preenchida por si só e essa luz está dentro dela, nalgum lugar... oq buscamos vem de dentro... que liberte seus monstros, suas angustias... que cante, dance e seus males espante!!

saudações poéticas!!