28 janeiro 2014

flor-maria



Era senhora já...

dessas que teimam em ler e nem óculos suporta tamanha teimosia, visto que não há mais grau que comporte tal desejo em enxergar palavras.

dessas que poderia usar Lupa de diminuir tensões e preencher suas tardes de palavras cruzadas caçando pensamentos esquecidos.

Sua origem é de mesmo início que se espera de senhoras sobreviventes que casaram 10 anos mais moças que seus cônjuges, resultando na perda precoce dos mesmos, não só pela década de diferença, mas tão mais pela força que percorre a carcaça de origem feminina. As fortalezas delicadas.
Em meio à normalidades, feijões mulatos e carnes assadas herdadas de ancestralidade, ela percorre o lugar do comum com calma, leveza e um tanto de conformação.

Esperava. Lenta e silenciosa. O passar dos dias quentes, frios, tortos de seu amadurecimento, entre pêssegos caramelados e mini-orquídeas regadas a água de mel - para adocicar o florescer.

Dentre todas as trivialidades cotidianas que uma jovem sonhadora senhora de 94 sóis poderia ter, ousou desejar três sonhos:

Assistir a um jogo no morumbi.
Não importava o jogo, o time, as cores da camisa.
Ela queria sentir o que se sente quando se torce por Amor.
Quando se espera, acima de qualquer tudo, que se vença pelo prazer de sentir prazer apenas.

Ver uma banda passar.
Na rua, no mesmo lugar que se evolui todos os dias, que se engrandece a vida se apropriando de afazeres necessários.
Ela queria sentir o que se sente quando se movimenta por Amor.
Quando a reunião surge da necessidade de estar somente, e a música se apresenta como som, ecoando os seus sentidos mais desconhecidos.

Andar de trem.
Mas não um trem com viajantes esperançosos que se lançam de folga para explorar o inusitado.
Ela queria sentir o que se sente quando se atravessa um caminho por Amor.
Dizia que é no dia e mais dia que se tem a real capacidade de perceber o amor de verdade.

Ela queria sentir o balanço da vida, se permitindo amar aos 94, recordando todos os amores de 93.

Não sentia medo de fechar os olhos para o colorido de suas rendas concebidas em tantas primaveras. Temia no entanto, não poder contemplar o sol de outono por deslize.
Por se esquecer da beleza que o aconchego da brisa pode proporcionar aos seus olhos cansados e ainda assim curiosos de viver.

Temia esquecer...

Que seu pai plantava esperança, sua mãe contava histórias de fadas, o marido esperava o terno passado às seis  e as crianças já possuiam as suas próprias.

Temia deixar de viver...

Mas não quando não lhe coubesse mais e sim enquanto era tempo.

Ela queria sentir o que se sente quando se vive por Amor.

Viveu.
Recebeu o seu fim com certeza de começo e iniciou o seu caminho com o entusiasmo do meio.
Ela queria sentir o que se sente quando se deixa de sentir e só resta
Amor.
( )




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